sexta-feira, 18 de julho de 2014

Matrimanicômio

Entrou a noiva, acompanhada por seu pai, um senhor de idade que visivelmente só esperava sua única filha casar para poder morrer em paz.
A beleza daquele momento envolvia a todos, aquele vestido branco representando a mais pura pureza que um dia achamos ter se extinguido. Lá estava. Pura e linda, a passos lentos e firmes.
O noivo aguardava, só não inteiramente impecável pois as lágrimas de felicidade escorriam em seu rosto de barba bem feita.
A música, a marcha nupcial, todos em pé.
Diferente de outros casamentos maçantes, o padre fez um discurso tocante, cativante, empolgante e avassalador. Todos, sem exceção, emocionados com o sublime desfecho de um romance antigo.
Seguiu o padre, depois de uma benção em latim, para finalizar o casório, a batina e enfim descansar, com as famosas perguntas e juras de amor. Sem pestanejar, os dois aceitaram. O que faltava era apenas uma pergunta, uma mera formalidade, mas o padre assim a fez:
-Se alguém tem algo contra este matrimônio, que fale agora ou ca...
-PARE ESTE CASAMENTO! - bradou um homem de terno, abrindo os imensos portões da igreja e invadindo a Casa de Deus.
Alguns segundos de choque e incredulidade geral.
Passados os pequenos instantes de infinito silêncio em que todos os olhos fixaram-se naquele estranho, o homem agora forçava a vista ao lançar seu olhar diretamente aos noivos.
-Pera aí... Essa igreja é a Nossa Senhora da Lapa?
-Nossa Senhora do Rosário, meu filho. - respondeu uma velhinha simpática sentada ao fundo.
-Deus do céu, gente, me desculpa!!! Nossa, desculpa mesmo! - fechou o portão e saiu às gargalhadas.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A abdução


Parte I - Descrevendo o começo

Abri meus olhos.
A nave não era grande. Devia ter mais ou menos o tamanho de um quarto, ou de uma sala de apartamento pequeno. Não sei, entretanto, se era apenas um compartimento de muitos, já que não saí de lá, onde era observado de perto por três criaturas e, de longe, por mais uma, que parecia supervisionar toda a situação.
Deviam ter entre 1,90m e 2m de altura. Cor acinzentada e formas humanas, exceto pela testa, bem maior que o normal, a ponta da cabeça triangular e a ausência de nariz. Usavam um uniforme branco, com detalhes prateados, com um emblema muito bonito, parecido com uma espécie de ave. 
Não senti medo deles em nenhum momento, mas estava muito confuso. Não sabia como havia parado ali, o que tinha acontecido e nem onde estava antes. Tentei me levantar, mas “me disseram” para não me mexer. Essa, aliás, é uma das partes mais difíceis de explicar: essa comunicação – e as outras que seguiram – se deram de forma telepática. Nós nos entendíamos sem falar nada. Quando eu falei, recebi a “mensagem” que não precisava de sons vocálicos para me fazer entender, que isso era em vão. Obedeci e me calei. 
Ao lado da maca onde permaneci deitado havia 3 janelas pequenas. Movi a cabeça lentamente para olhar por elas e notei um céu absurdamente estrelado. Só então percebi que estávamos em altíssima velocidade. Sem ruídos, vibrações de motores ou nada do tipo. Era como se o céu se movesse rapidamente pela janela, e não o contrário. Foi o primeiro momento em que o medo esfriou minha espinha. 
Pra onde eu estava indo, afinal?

Parte II – O que aconteceu

Percebendo, ou sentindo, sei lá, o meu pavor, a criatura que estava mais afastada se aproximou e me tranquilizou “dizendo” que eu logo estaria no mesmo lugar que estava antes. Os outros três seguiam concentrados me olhando, me examinando, mas sem me tocar nenhuma vez. Era como se pudessem ver meus órgãos internos através de minha pele. 
Alguns minutos, talvez meia hora depois, todos se afastaram de mim e prenderam-se em um tipo de cinto de segurança. Houve um tranco, como se a nave fosse de sei lá quantas centenas ou milhares de quilômetros por hora para zero em um segundo, mas sem impacto algum. Meu pescoço doeu, minha cabeça latejou forte umas 3 vezes, parecia que ia explodir. E, do nada, passei a sentir um frio na barriga. A nave descia verticalmente em altíssima velocidade. Fechei os olhos com força, imaginando e pressentindo o impacto que viria a seguir. Pensei que era meu fim. Mas, ao contrário, dessa vez houve uma desaceleração suave e constante, me dando alívio e me fazendo abrir os olhos para buscar a janela, curioso. 
A “aventura”, se assim posso dizer, já estava suficientemente absurda, parecia filme, parecia coisa do History Channel, qualquer coisa do tipo. Mas bizarrice pouca é bobagem. Quando abri os olhos, pude ver o momento exato que a nave submergiu no oceano. Lembrei do Triângulo das Bermudas, mas na verdade eu não fazia a menor ideia de onde estávamos mergulhando. Enquanto a nave descia, mais e mais, os seres se soltaram, mas não vieram em minha direção. Pela janela já não havia visibilidade nenhuma, somente as luzes internas daquele compartimento estranho. 
Surgiu, então, não sei de onde (pois tentava olhar para a janela), uma quinta criatura, Essa, bem diferente dos quatro tripulantes, não tinha formas humanas. Era marrom, bem mais baixo (1,40m, creio eu), olhos imensos e vermelhos, braços compridos. Ele segurava uma pequena peça de aparência metálica, a qual entregou para um dos 3 seres que haviam me “examinado”. Outro deles colocou em meu rosto uma espécie de óculos escuro, roxo. Daí veio um clarão muito, muito forte. Sem os óculos, imagino que poderia ter ficado cego, tamanha a claridade que se fez.  E após o clarão, de lá não me lembro de mais nada.

Parte III –  O depois

Quando abri os olhos, estava deitado na grama, num lugar mais afastado do sítio onde me reuni com alguns amigos. Era lá que eu estava antes de tudo acontecer. Coloquei a mão no bolso da minha bermuda e meu celular estava lá. Olhei as horas. Lembrei-me que quando saí de perto do pessoal, buscando sinal pro celular, eram 22h. E, mesmo com a clara impressão de ter passado umas 5 horas fora, no espaço, no oceano, sabe-se lá onde, o relógio marcava 22h10. Tudo aconteceu em 10 minutos! Levantei e voltei pra perto da galera, que ainda fazia churrasco. Passei reto por eles, precisava ir ao banheiro, estava com uma vontade absurda de urinar. No espelho, notei uma pequena cicatriz no meu peito e passei a procurar por outras. Havia mais uma, um pouco maior, nas costas. Um pouco preocupado, vesti uma camiseta e voltei ao convívio dos meus amigos sem lhes contar nada. Nunca senti incômodo algum. Passado alguns dias, a cicatriz do peito desapareceu. Já a das costas, que era maior, não sumiu, mas eu a cobri, tempos depois, com uma tatuagem: um desenho levemente parecido com o emblema do uniforme dos tripulantes da nave onde passei os momentos mais bizarros da minha vida. Momentos estes que, por falta de coragem, jamais contei pra ninguém e que hoje, sem qualquer motivo aparente, resolvi narrar.

Se passei por uma abdução extraterrestre? Difícil dizer.
Minha memória e minha imaginação passaram a se confundir desde aquela noite de carne, bebidas, substâncias ilícitas e música ruim...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O gato

3 da manhã.
Ou 4. Não sei, perdi a noção pelo meu longo tempo acordado.
Me reviro na cama, mas sempre que o sono começa a me tomar, o maldito gato na rua solta mais um de seus miados altos e estridentes.
Gato no cio é foda. O barulho que eles fazem parece mais com gritos de uma criança irritante que precisa urgentemente de fonoaudiologia. E eles não cansam de miar, o mais alto possível, até descolarem uma transa felina.

E eu sem conseguir dormir. Nessas condições minha mente viaja. Vai no passado, no futuro e em lugares inexistentes, quase que como um sonho, porém ainda acordado. Ou só parcialmente. É quando vem aquele bem-estar dos segundos pré sono profundo. E quando as pálpebras se tocam, o miado corta o silêncio que vai embora com a sensação gostosa.
Maldito gato!

E a cena se repete.
E se repete.
E se repete.
Maldito gato...

Deve ser umas 5 da manhã. Olho pela janela, irritado, e tento achar o filho da puta. Mas do alto de 17 andares não vejo nada. Me deito novamente.
Só consigo ouvir o miado. E mais um. E outro.

De repente escuto um tiro. Acharam o filho da puta.

E depois disso, o silêncio reina absoluto na madrugada do bairro.
Sem dúvidas, o silêncio mais barulhento que meus ouvidos não ouviram. Sem dúvidas, eu preferia os miados do gato.
Não consigo mais dormir.

Maldito silêncio.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Seus olhos


Esses que me olham com ternura,
candura que perdura
até nas horas mais impuras,
é neles que me esqueço,
me entorpeço e me aqueço
e no desejo do seu beijo,
enlouqueço no desfecho
que em sonho me permito,
como um grito,
como em tantas outras dores,
nestes olhos sonhadores,
que tão firmes quanto torres
em que do alto me atiro,
como disse em outras vezes,
mas já foram tantos meses,
que sem medo e sem segredo,
como um tiro no meu peito,
vou criando minha cura,
que loucura,
de onde veio,
de onde veio, criatura,
que a essa altura
já entrou na minha vida,
sem saída,
sem receio,
sem medida,
meu anseio:
esse brilho do seu olho,
o seu riso,
seu sorriso,
seu cheiro na minha blusa,
me abusa,
me amassa,
faz de mim a sua caça,
me põe dentro do seu peito,
do seu leito em que me deito
e me declaro sem respiro,
sem suspiro e sem pudor,
já falei tanto de amor,
tão depressa,
tanta pressa,
outra coisa não interessa,
só seus olhos me olhando,
imaginando o amanhã,
só seus olhos quase verdes
pela luz dessa manhã,
só seus olhos,
lindos olhos,
lindos olhos de avelã.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O amigo do Diabo

Passou a vida inteira jogando na loteria.
Não abandonou seu vício nem mesmo depois da fatídica tarde em que seu médico trouxe o diagnóstico de que não teria mais de um mês de vida, assolado por uma devastadora e misteriosa peste que já havia levado muitos de sua terra natal, além de todos os seus familiares.
Era pobre, mas não miserável, de modo que nunca passou fome, mas não teve qualquer abundância e nem pôde realizar seus sonhos. Queria andar de jet ski, exibindo-se em uma praia repleta de garotas semi-nuas. Queria tomar os melhores vinhos. Queria ter um alambique em casa. Queria voar de helicóptero. E, de ótimo coração, também queria ajudar todas as crianças pobres do mundo.

O tão esperado bilhete premiado veio, mas por ironia cruel do destino, somente no pior e último momento de sua vida. Seus braços fracos e exauridos pela doença mal conseguiam se levantar para esboçar comemoração. Suas pernas, tanto menos. Na escuridão quase total de seu quarto, salvo pela luz de uma única vela acesa, o que era pra ser felicidade transformou-se em lamento e revolta. “Para o diabo!”, murmurou, pois não podia mais gritar. “Para o diabo!”.
Nesse momento, a chama da vela solitária começou a crescer e a crescer, fazendo todo o quarto ser tomado pelo fogo em questão de segundos. Na ardência repentina, surgiu a imagem de um ser vermelho, de chifres, cauda e um impecável fraque negro. Era o diabo em pessoa.
- O que você quer? – perguntou o agora milionário, sem medo e consciente da situação.
-Não lhe parece óbvio? – começou Lúcifer com sua voz grave e exalando terrível hálito podre. – Quero sua alma.
- Mas isso não devia ser um pacto? Eu não deveria ter algo em troca?
- O que quiser, meu caro. O que quiser.
- Pois bem – pensou bem antes de anunciar. – Quero levar toda a minha fortuna comigo. E se não der para usar dinheiro no inferno, que eu possa transformar esse poder financeiro em algum tipo de poder equivalente. Quero continuar rico!
- Que assim seja – respondeu o diabo, finalizando a conversa.
Entregou-lhe um papel para que assinasse. E feito isto, sua horripilante imagem foi sumindo e o fogo apagou-se por completo, sem consumir nada daquele humilde quarto. Por um instante indagou a si mesmo se aquela experiência não havia sido um delírio causado por seu estado terminal. Sem resposta, fechou os olhos para dormir e não mais os abriu.

Era o fim de sua vida de lixo e o início de uma era de luxo que não começou tão boa assim. Estava no inferno, afinal. Um gigantesco deserto de areia vermelha e escaldante abriu-se a sua frente e a imagem de um céu escuro acima de pessoas se arrastando em busca de alimentos e de escravos açoitando outros escravos perturbou-lhe a mente. Mas estava lá, livre da doença e com poderes que ainda não conhecia.
Procurou pelo demônio com quem tinha conversado para saber se sua parte do pacto havia sido cumprida e teve resposta positiva, apesar de não ter recebido muita atenção. Ganhou, então, pedras mágicas que podiam ser trocadas pelo que quisesse. Era o dinheiro que esperou a vida toda e só chegara depois da morte. Com suas pedras, tratou logo de melhorar o ambiente que agora vivia. Sua riqueza impedia qualquer castigo infernal. Até mesmo no inferno os ricos têm privilégios. Construíram para ele uma casa, como sempre desejou, com fontes de cachaça. Adquiriu uma espécie de helicóptero individual, por onde podia sobrevoar todo o deserto vermelho. Com outras tantas de suas intermináveis pedras mágicas, deu um jeito até de fazer uma praia artificial no deserto para que andasse de jet ski. Só faltava, no entanto, quem o ensinasse. Os melhores e mais caros vinhos do planeta estavam na adega de sua casa subterrânea. E como nunca bebia sozinho, passou a convidar seu primeiro e único conhecido, Lúcifer, para as noites de degustação e consequentes exageros. Brindava com o diabo e conversavam sobre todos os temas possíveis e imagináveis. Entre uma taça e outra, falavam dos políticos que por ali estavam, de quem gostariam de ver no inferno, das guerras, dos pedófilos e até mesmo de Deus, a quem o demônio torcia a boca cada vez que pronunciava. A situação era que ele só tinha Lúcifer como companhia e Lúcifer honrava-se de ser convidado para tantos drinks. Ninguém nunca havia se aproximado tanto do diabo. Viraram amigos. Ele ajudava na parte administrativa do inferno oferecendo, inclusive, uma série de melhorias, as quais o demônio nunca havia tido a capacidade de pensar. Tornou-se o braço direito do tinhoso.
Em uma outra infindável noite qualquer regada a vinho, confessou a Lúcifer que apesar de ter sua alma vinculada ao mal, mantinha em sua mente, e quem sabe em seu coração, seu antigo desejo de ajudar de alguma forma as crianças que passavam fome no mundo. O diabo tentou persuadi-lo, dizendo que “o mundo” era passado, pois o “seu mundo” agora era o inferno, com tudo que ele queria e era seu por direito, mas foi em vão. E diante de sua inabalável convicção e bondade, Lúcifer percebeu que aquele não era seu lugar. Como forma de raro agradecimento para com aquele que foi seu único amigo em toda eternidade, propôs:
- Eu rasgo nosso pacto e te faço voltar à vida, com saúde e toda a sua riqueza. Você realiza seu sonho e, na hora certa, eu volto para te buscar e tomarmos mais vinho por aqui.

Aceitou, radiante e emocionado. Fechou os olhos, como na vez que morreu, mas dessa vez os abriu logo. Estava novamente em seu pequeno quarto. Levantou-se, olhou no espelho e percebeu-se incrivelmente saudável. Tomou-se por completa felicidade até que viu sua riqueza que trazia do submundo: um punhado de pedras avermelhadas, sem qualquer valor aqui na Terra. Procurou desesperado e achou seu bilhete de loteria, mas o prêmio já havia caducado há tempos. Estava pobre de novo.
Depois de algumas horas de lamentação, resolveu sair às ruas para aproveitar seu único bem, sua saúde. E ao atravessar a primeira rua, descuidou-se e virou vítima fatal de um atropelamento. Era a segunda vez que morria, mas a primeira que morria miserável.
No além, foi recebido por anjos que o guiaram até o céu, onde, por toda a eternidade, tocaria harpa em um ambiente de total calmaria confundida com tédio, ou vice-versa. Sem vinhos, alambiques ou helicópteros.

E o diabo? Bom, este rapidamente se esqueceu do babaca que tinha passado por ali. Preocupava-se apenas em fazer manobras radicais no jet ski, exibindo seu belo rabo para as garotas semi-nuas.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Trincheira

Combatentes, um aviso: não vão me ferir.
Hoje encaro a guerra de outro modo. Não mais me exponho como antes. Quantos tiros tomei em meu peito? Sinceramente, não sei como sobrevivi.
Carrego um escudo pesado. Mas não o solto por nada. Meu capacete está apertado, não vai cair da minha cabeça caso eu me mova. Sozinho, cavei uma trincheira profunda e muito segura.

Não me chamem de covarde. Ou chamem, se assim considerarem. Eu não me importo. Aprendi a atirar e no primeiro sinal de perigo não tenho piedade em matar quem pode me ferir. As cicatrizes são visíveis e me lembram o tempo todo do perigo que corro a cada batalha. Mas não me retiro, apenas me protejo.

Sei que me meti em um buraco tão fundo que não sei se posso sair para ver o sol. E às vezes penso que se o inimigo aparecer enquanto me distraio e disparar fatalmente em meu peito, tanto melhor. Acabaria com meu desconforto e as cicatrizes não fariam qualquer diferença. Às vezes torço pra isso.
Mas minha experiência no campo de batalha me diz claramente: não iriam me matar, somente me ferir. Logo, me protejo mais e faço disso um ato impossível.

Se não for fatal, ou seja, para sempre, que assim seja, portanto. Que minha trincheira me esconda, que meu escudo me ampare e minhas armas não falhem contra esse inimigo chamado paixão.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Eutanásia

Livre-me do mal, que tal? Cure-me do desconforto que morto não sente dor. Pare minha fome e retome sua vida. Agrida com vitória quem só me faz ferida. Deixe-me ser dominada, já que dela não escapa nada. Não tem jeito, já tá feito. Doença maldita que me leva à escuridão. Não, não peça perdão. Melhor assim. O fim não é pior que esse meio. O alívio é melhor que o receio. E é assim que eu me recolho. Se insiste, me olha no olho. Não posso falar, mas sei demonstrar. Neste brilho, como de uma mãe para um filho, está sua absolvição. Não se preocupa. Não bota a culpa em ninguém, pois quem poderia evitar? Mas não me deixa te ver chorar! Não me dá mais esse castigo. Esse fardo, amigo, é meu. Mas valeu! Estarei para sempre contigo. E me carrega sempre na memória. Toda história que construímos... e como nos divertimos! Agora, tenta dormir. Amanhã já quero partir. E terá que assinar um papel que vai garantir minha ida pro céu. Seja forte, meu rapaz. Pode crer: ficarei em paz. Quando o líquido me invadir, segura bem a minha mão. Minha visão vai diminuir e não quero ver ou sentir sua lágrima caindo. Estarei indo. Cuida da sua mãe e da minha. Elas eram o mais importante que eu tinha. Fica bem aí desse lado. Eu só posso dizer obrigado. E quando der, por favor, sorria. Vai acabar a minha agonia.











dedicado à minha gata Faísca que, há dois meses, partiu rumo a Gatópolis.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Jesus Cristo is now following you on Twitter!

Ele voltou. No século XXI. E justo no Brasil.

Voltou e demorou para aparecer, pois precisava de um plano para provar pra humanidade que ele era Ele mesmo. Ninguém nunca entendeu direito esse plano, mas ele conseguiu. Todos sabiam que aquele era Jesus. Foi um plano divino, afinal.

Na TV brasileira foi um fenômeno.
Participou do Big Brother e foi recordista de vitórias em provas do líder. Ganhou todas que participou! As provas de resistência foram sua especialidade. Para dar graça à competição, Boninho criou, então, uma nova regra que proibiu 5 lideranças consecutivas. Com isso, o novo líder indicou Jesus para o Paredão e o público exigiu a eliminação do líder, acusando-o de “novo Judas”. A produção do programa acatou. Jesus ganhou o reality e doou o prêmio.

Foi no Domingão do Faustão pra falar de sua participação e acabou indo às lágrimas no Arquivo Confidencial. Deu entrevista pro Jô, que insistiu na piada de dizer que eles eram xarás, pois seu nome era "Joshuares". Fez crescer cabelo na cabeça do Derico e transformou a água da caneca do Jô em vinho.

Recusou assinar contrato fixo com qualquer emissora e participou também da Fazenda. Amou todos os animais de lá como a ele mesmo e ressuscitou um bezerro. Ganhou fácil também.
Bem-humorado, participou do Pânico na TV e obviamente levou pra casa o carro de passeio do Amilcar na prova de andar sobre as águas.

Seu Twitter passou a ter mais seguidores que o Twitter da Lady Gaga, do Marcelo Tas, do Luciano Huck e do Mano Menezes juntos. E o número aumentava absurdamente a cada dia. Os cristãos, todos, queriam criar uma conta no microblog só para seguir o @JesusCristoOficial que, não só tinha o selo de Verified Account, como também o de Jesus’ Account. Seu nome ficou o tempo todo nos Trending Topics, que frequentemente também tinha as hashtags #elevoltou, #eujasabia, #aleluia e #perdao. Seus tweets contavam de forma descontraída as suas impressões sobre o mundo de hoje. O único problema, no entanto, é que indiretamente ele provocou o milagre da multiplicação de baleias. O servidor do Twitter não aguentou e entrou em colapso.

No Facebook, Jesus ostentou a maior e mais organizada Farmville do mundo. Em seu mural, testes do Quiz Planet revelaram que seu nível de maldade era 0%, que se ele fosse um filme do Kubrick ele seria o “Glória Feita de Sangue” e que em uma suposta vida passada ele teria sido um camponês medieval. E milhares de pessoas “curtiram” tudo que ele publicou.

Jesus também criou um Formspring, pra sanar as dúvidas da população mundial. Sensato, não exibiu perguntas pessoais, mas fez questão de responder por e-mail aos curiosos desesperados. Dentre as perguntas que mais se destacaram, estavam: “O Toninho do Diabo te incomoda?”; “O que o Senhor tem a dizer sobre o Santo Prepúcio?” e “O Corinthians vai ser campeão da Libertadores?”.

A Igreja foi a única instituição que não reconheceu Jesus como Jesus, apesar de sempre terem cravado sua volta. Não seria interessante pra eles, visto que o próprio Cristo não se vinculou à religião alguma e criou um novo conceito para religião. Na política, também não se envolveu. Disse ao CQC que pegou raiva depois que Pôncio Pilates e Harodes Antipas o sacanearam. Gentili brincou dizendo que não mudou muita coisa de lá pra cá.

Foi convidado a dar o pontapé inicial na partida final da Copa do Mundo, que teve toda sua renda destinada a pessoas carentes. O jogo foi entre Brasil e Argentina. O jogo começou e Jesus logo teve que voltar ao gramado, 38 minutos depois, solicitado pela equipe médica. O principal jogador brasileiro estava no chão, com o joelho estourado e Cristo o curou apenas pondo a mão sobre a patela do camisa 10. A torcida cantou: “Há, há! Hu, hu! A mão de Deus é nossa!”

No final do ano, de novo na Globo, o cantor Roberto Carlos, com um impecável terno azul, fez emocionado o melhor especial de sua vida. E quando cantou “Mas meu amigo, volte logo. Venha ensinar meu povo que o amor é importante. Vem dizer tudo de novo.”, Cristo entrou triunfalmente no palco e, juntos, encerraram o show com a canção: “Eu voltei, voltei para ficar..."

E foi numa tarde de sábado que ele convocou jornalistas do mundo inteiro – e ele tinha aprendido a falar todas as línguas muito bem, conselho de seu amigo João Paulo II – para uma coletiva de imprensa. Disse que o mundo não tinha muito jeito mesmo, que o juízo final começaria em 3 meses e que, nesse período, iria para os Estados Unidos treinar MMA para o derradeiro combate corporal com o Anti-Cristo. Ganhando ou perdendo, o planeta seria castigado com diversos desastres naturais por 7 anos, mas um disco voador livraria os bons do suplício. Após seu pronunciamento, vestiu sua jaqueta de couro, subiu em sua Harley Davidson e voou até sumir nas nuvens.

E depois disso, nunca mais apareceu.
Mas o twitter voltou a funcionar normalmente.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Perfídia

Bola 8 na caçapa do meio, cantou sua última tacada. E venceu.

Uma última golada na cerveja, matando quase todo o copo americano. “O sabor da vitória”, disse erguendo seu copo, desmerecendo a atuação da dupla adversária, que perdeu o jogo para um só homem.
Seu primo, companheiro de sinuca, não estava lá, havia dito que estava doente e não poderia sair de casa.
Recusou outro jogo. Recusou outra cerveja. Queria estar sóbrio.
Foi até o dono do bar, velho conhecido, e pediu para que pusesse a garrafa consumida na conta. Sem problemas.
Com ele, nada de dinheiro. Apenas seu RG e um presente que seu tio lhe deu.
Despediu-se de todos e tomou direção contrária à sua casa. Pra quê voltar pra casa, se sua mulher não estaria lá, afinal?
Ela havia dito que passaria a noite na casa de sua mãe, pois ela não estava bem.

No caminho, passou por um campinho. Desses que só se encontram nas periferias da cidade e mesmo assim estão cada vez mais escassos. Algumas crianças terminavam o futebol. Já era noite. Parou para observar e sentiu saudade de quando era moleque e jogava bola com o primo, o mesmo da atual parceria na sinuca, em um campinho muito parecido, até o anoitecer.
Uma das crianças do time que havia vencido o jogo, feliz e aliviada como se tivesse tirado um peso imenso das costas, comemorava cantando:
“Olha o passo do elefantinho. Olha como ele é bonitinho.”

Seguiu em frente.
Passou por um prostíbulo sujo do bairro. Olhou para a meretriz que estava na porta, uma mulher loira que visivelmente já não gozava da juventude, usando roupas que visivelmente não gozavam do bom gosto. Lembrou de algumas das vezes que havia adentrado aquele estabelecimento. Os porres que lá tomou, as garotas com quem se divertiu e o dinheiro que ali ficou. Isso, é claro, antes de se casar e se tornar um homem direito.

Virou a esquina. Caminhou por uma rua escura e estreita, com postes que ocupavam quase toda a calçada e caixotes jogados que faziam qualquer pedestre desviar, tendo que passar pelo meio da rua. Isto é, se existisse algum outro pedestre com coragem o suficiente de passar por aquela rua tão sombria e aterradora.
De um lado, algumas fábricas já vazias e sem funcionamento. Do outro, um muro, bem longo, separando o asfalto do mato e que só terminava na lateral da única casa da rua.
Uma casa sem vizinho nenhum.
Era lá o seu destino.

Ao se aproximar, viu que a única luz acesa daquele lar era a do andar de cima.
Subiu em cima do muro do matagal, passou pro muro da residência e pulou para dentro do quintal dos fundos. Conhecia muito bem aquela casa, tão bem que tinha certeza que a porta da cozinha estaria aberta. Estava.

Entrou. Tudo escuro. Não fez barulho nenhum.
Foi até a sala. Sem enxergar nada. E sem fazer barulho nenhum.
Chegou na escada. Subiu devagar. Não fez barulho nenhum.
Andou pelo corredor. Lentamente. Barulho nenhum.
Com a mão esquerda, girou e empurrou a maçaneta.
Com a mão direita, sacou o presente de seu tio.
E deu dois tiros.
Um no peito de sua mulher.
E um na cabeça de seu primo.

Jogou a arma sobre a poça de sangue.
E saiu pela porta da frente.

Na rua escura, andava de volta para casa e assobiava:
“Olha o passo do elefantinho. Olha como ele é bonitinho.”

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Dorme, dor

Dorme
Descansa os olhos cansados de chorar
Deixa que ponho tudo em seu lugar
E quem sabe eu possa te fazer rir
Quando o sol voltar a se abrir

Dorme
Que amanhã será um novo dia
E se não voltar tua alegria
Essa tua amarga agonia
Ganhará a minha companhia

Dorme
Com os anjos, se tiverem respeito
Enquanto construo aqui nossa casa
E se um não proteger-te direito
Eu vou lá e arranco-lhe a asa

Dorme
Que essa dor pode não ter passado
Mas eu tenho um favor a pedir
É que eu quero estar bem ao teu lado
Quando tu acordar e sorrir.